o plano

Desde o começo da gravidez, eu tinha a certeza de uma coisa: queria um parto natural. Era um desejo muito forte que eu trazia comigo de poder dar à luz um bebê apenas com a inteligência corporal que toda mulher carrega em si naturalmente.

Para minha decepção vi que não seria nada fácil realizar meu plano de parto ideal, pois já nas primeiras consultas, os profissionais que visitei foram categóricos: “pense bem nos riscos, você é uma gestante considerada idosa” (com 38 anos!) e o pior de tudo: “esse bebê é grande e você é muito pequena”! (como se você possível prever o tamanho final de um bebê aos três meses de gestação.)

Eu fui percebendo que aquela conversa toda era uma grande roubada e comecei a pesquisar o parto natural na net e nos livros. Cada vez que lia um relato de parto me comovia com a profundidade do ato que é trazer um filho ao mundo participando do processo ativamente.

Foi aí que, através de uma amiga, descobri a Betina, obstetra e homeopata, que se dedica exclusivamente ao parto natural e que antes de ser médica é uma pessoa linda e muito humana. Ela foi a minha “fada boa” do parto! Desde as primeiras consultas (e a primeira foi na minha casa, as duas conversando sem sapato no sofá como velhas amigas de infância) senti que seria possível sim um parto sem intervenções.

O Gê, pai do Guido e meu amor, foi o meu grande incentivador, me apoiando incondicionalmente desde o início. Decidimos levar o plano adiante e tivemos uma gravidez absolutamente tranqüila, sem nenhum susto, sem nenhuma complicação. Felizes da vida! Eu tinha certeza que ele estaria ao meu lado quando o Guido nascesse na nossa casa, sem aquela confusão de hospital, de agulhas e seringas, de gente falando alto, de luzes acessas. Queríamos receber o Guido do jeito que todo bebezinho merece. Com calma, com amor, com respeito.

o dia

Quando completei 39 semanas do barrigão, o Guido resolveu que queria sair. Despertei de um sonho muito maluco às 4h30 da manhã sentindo uma dor diferente. Eu sabia que já era o trabalho de parto pois as contrações vinham de 20 em 20 min. Fiquei super empolgada!

Nem pensei em acordar o Gê aquela hora da madruga. Fiquei andando pela casa, rindo sozinha, curtindo aquelas contrações como a sensação mais mágica dos últimos 9 meses! Esperei o dia amanhacer e lá pelas 8h liguei pra Betina que recomendou que eu descansasse um pouco (quem disse que era possível descansar naquela euforia?!).

O Gê acordou e eu disse que o Guido tinha escolhido aquele dia pra nascer. Ele saltou da cama, colocou as lentes de contato e se pôs a fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Foi engraçado! Fez o café da manhã, se vestiu, saiu na rua, voltou com flores, incenso, velas e CDs de mantras indianos. Depois foi até o posto da esquina e encheu de ar a piscininha de plástico para deixar no chuveiro. Eu ria muito do jeito confuso e atencioso dele demonstrar apoio naquele momento, mas as contrações estavam aumentando e no final da tarde a coisa já estava ficando séria, com contrações de 5 em 5 minutos.

Liguei de novo pra Betina lá pelas 17h e ela veio de vez para “montar acampamento” aqui em casa. Aí começou pra valer o trabalho, que não é só um processo físico mas altamente energético e que exigiu de mim literalmente todas as forças que eu tivesse pra somar. A cada contração, eu respirava de um modo diferente. Fui usando tudo o que eu tinha aprendido a vida toda nas aulas de voz do teatro, no kung fu, na yoga, na ginástica holística.

Betina me apoiava com massagem, com conversa, com sua presença discreta e precisa. E eu andava pala casa toda, procurando uma posição confortável e não tinha outra senão em pé mesmo ou apoiada no vaso do banheiro, literalmente "meu trono". Eu procurava respirar concentrada, soltando a voz em notas musicais. Eu só sei que comecei cantando como uma fada e lá pelas tantas da madrugada eu estava uivando como uma loba e cantando em línguas primitivas. Essa foi outra parte engraçada! Engraçado agora porque na hora, a energia das contrações me faziam rir e chorar ao mesmo tempo, como se tivesse perdido o controle de todas as minhas certezas. E tinha perdido mesmo! Acho mesmo que entrei em um estado sutil de consciência.

Existe uma diferença fundamental entre um parto ativo e um procedimento médico impessoal. Parir é um processo de depuração intenso. Entendi que eu tinha que fazer aquilo acreditando plenamente em mim e apesar dos meus medos. E o medo maior é o de morrer um pouco, metaforicamente falando. Para nascer o filho tem que nascer a mãe também. E eu senti que tinha que tirar de dentro, uma outra de mim mesma. Nova e pronta pra ser mãe.

Enquanto isso, na barriga, Guido estava super bem. Batimentos cardíacos normais e tranquilão dentro da bolsa de água que não tinha estourado ainda. Mas a parte complicada é que ele não encaixava no meu quadril (estava alto na bacia), o que estava dificultando um pouco o processo, apesar de eu estar com dilatação completa.

Acho que o medo que eu sentia lá no fundinho é que não deixava o processo se desenrolar ali no final do trabalho. Devo ter retido no fundo do meu inconsciente as palavras que me diziam incapaz de parir um bebê “grande demais”. Eu tinha, inconscientemente, um pavor enrustido que o bebê “entalasse” na saída.

Conclusão. Tudo ia muito bem, mas as contrações começaram a ir embora, como uma recusa inconsciente do meu corpo. Quando percebi que era eu e somente eu quem poderia consentir que o Guido nascesse e que a vida dele estava ali dependendo totalmente de mim, reuni toda a energia possível, segurei bem forte a mão firme do Gê e, sentada no banquinho do parto, empurrei ele pra fora segundo o que a minha intuição mandava. Esqueci toda a técnica! Eu sabia o que tinha que ser feito!

Nessa hora percebi a importância de não ter sido anestesiada, porque pude sentir palmo a palmo a passagem dele pelos ossos da bacia. Foi nesse momento que ele finalmente encaixou e veio mostrando o “periscópio da cabecinha”, para usar as palavras do Gê.

o momento

A Betina me deu um espelhinho pra ver o Guido saindo. Fiquei tão feliz, mas tão feliz, que joguei o espelho longe (e não quebrou!) e pensei comigo: pronto! Superei meu medo. O resto deixa comigo que eu sei como fazer!

Foi o tempo do Gê ligar pro pediatra neonatal. Quando vi que o Guido ia nascer e ele estava na sala (por causa do sinal do celular) soltei um baita berro que ajudou o bebê a descer mais ainda (momento comédia)! Ele voltou correndo, largou o celular no chão e ainda conseguiu clicar umas fotos. Mas o melhor era ver ao vivo!

E tudo foi muito rápido! Depois de mais uns dois empurrões, eu mesma peguei o Guido nas mãos, desenrolei o cordão e depois de 3 ou 4 segundos de silêncio, ele berrou bem alto e forte pra que o mundo todo escutasse sua chegada.

Não dá pra dizer o que senti naquele momento, com a consciência alterada de tão lúcida e a alma completamente lavada de amor e de alegria. Após 28 horas de trabalho de parto vivido, nascia junto com a manhã um bebê forte e saudável de 3kg e 50 cm e uma mãe e um pai completamente perplexos diante do mistério ancestral de lamber a própria cria.

Depois chegou o Cacá e ajudou o Gê a cortar o cordão umbilical que ficou ainda um tempão ligando a gente. Guido tomou seu primeiro banho de balde enrolado numa fralda de pano e depois de pesado e medido, o Cacá entregou prá gente o “bebê charutinho”, enrolado só num cueiro de flanela. Simples assim.

Betina e Cacá se foram e ficamos os três quietinhos na nossa cama, naquele calor do afeto que começávamos a descobrir juntos e que hoje se reforça a cada dia. Podemos dizer que nossa família começou na realização do desejo lindo de um parto natural, que tivemos o privilégio de viver.

Quando contamos sobre o parto domiciliar, alguns ficaram horrorizados, outros surpresos e outros orgulhosos e encorajados, cada um segundo sua própria história de vida, suas crenças e valores.O importante para nós foi poder escolher com consciencia e sem riscos. Tomara que mais pessoas comecem a se dar conta de que a indústria da cesareana é apenas mais uma maneiras de enquadrar nossos instintos e sentimentos, transformando um processo fisiológico íntimo em atividade lucrativa, segundo a lógica da produção em série. É também um desrespeito ao corpo e a integridade psíquica da mulher que acuada e sem informações seguras, deixa de acreditar em seu potencial e desiste de parir.

Uma maneira muito feliz de mudar o mundo é começar pelo respeito ao outro ser humano desde a hora em que ele nasce. Afinal, “gentileza gera gentileza” e isso eu fiz questão de oferecer ao Guido como primeiro presente.